A medicina, ainda bem, tem recursos para domar esse tormento que aflige sobretudo as mulheres.
A escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) assinou obras aclamadas, como os romances Orlando e Mrs Dalloway, e contos, a exemplo de Kew Gardens. Mas a habilidade com o texto não parecia ser suficiente para quando o assunto eram as paralisantes dores de cabeça que a acometiam. No ensaio Sobre Estar Doente (On Being Ill), ela relata a dificuldade em descrever seu padecimento: “O idioma inglês, que pode expressar tão bem os pensamentos de Hamlet e a tragédia do Rei Lear, não tem palavras adequadas para a enxaqueca”.
Em 1998, numa foto exposta na mostra Personagens Femininas, da fotógrafa Vania Toledo, Fernanda Montenegro representava a Mulher com Enxaqueca – de roupão, sentada, com a expressão de desalento de quem mal consegue abrir os olhos. Hoje aos 90 anos e sem demonstrar a mínima intenção de parar a carreira, a atriz admitiu em entrevista: “Já representei de olhos fechados, chorando de dor, por não aguentar a luz”.
Prestes a completar 40 anos, a tenista norte-americana Serena Williams é a imagem da força e coragem nas quadras. Recentemente, porém, ela contou que muitas vezes precisou vencer dois oponentes nas partidas: a adversária e a agonia latejante e debilitante que a persegue desde os 20. “Enxaqueca não é uma lesão no joelho, que se pode ver. Não dava para dizer para meu pai ‘estou com dor, vou parar de jogar’. Então me acostumei a jogar com dor mesmo.”
Para ter uma ideia, a ala feminina tem um risco de duas a três vezes maior de sofrer com essa condição, também conhecida como migrânea.
Um artigo recente da revista científica Nature fez uma provocação: se fossem os homens os mais atingidos por essa baita dor de cabeça, os estudos para entender melhor tal prevalência já estariam muito mais avançados.
Sim, há séculos os cientistas sabem que um componente hormonal ligado ao ciclo da menstruação torna as mulheres tão mais suscetíveis a esse sofrimento. Só que, de acordo com a publicação, já passou da hora de ir mais a fundo nessas diferenças entre os gêneros no contexto da enxaqueca.
Até porque há um complicador nesse roteiro: o problema passa a atormentar ainda mais entre a segunda e a quarta década da vida, bem quando as mulheres estão a pleno vapor – em geral investindo nos estudos e na carreira e muitas com filhos pequenos exigindo atenção.
Antes de mais nada, já vamos combinar uma coisa: a enxaqueca está longe de ser apenas uma dor. Latejamento de um lado da cabeça, náusea, formigamento nas mãos, confusão mental – os sintomas vão num crescendo e, no limite, impedem a pessoa de continuar qualquer atividade. Nessa hora, restaria apelar para a escuridão e o silêncio.
Mas, opa!, que mulher tem a chance de parar o mundo quando a coisa aperta?
“Estamos falando de uma doença complexa. A dor é apenas a ponta do iceberg”, afirma o neurologista Tiago Gomes de Paula, do Headache Center Brasil, centro em São Paulo dedicado ao tratamento de cefaléia.
“Daí a importância de fazer o diagnóstico correto, diferenciar os casos entre episódicos e crônicos, para então direcionar o tratamento”, pondera o médico.
A enxaqueca tem um componente genético como base. Na bioquímica do cérebro, o equilíbrio entre substâncias calmantes e estimulantes é o pulo do gato para tudo funcionar bem.
Na massa cinzenta de quem nasce com a predisposição para a migrânea, porém, os componentes excitatórios predominam, elevando assim a sensibilidade à dor. “Uma linha
de pesquisas nesse sentido vem desvendando o papel do peptídeo relacionado ao gene da calcitonina, o CGRP”, exemplifica a neurologista Fabiola Dach, responsável pelo Ambulatório de Cefaleia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).
“Pessoas com histórico de enxaqueca apresentam uma quantidade maior dessa proteína”, esclarece. Para esse grupo, fatores como estresse, mudança brusca de temperatura e determinados alimentos, caso de queijo e chocolate, são estopim para o martírio.
O sobe e desce do estrogênio A princípio, meninos e meninas com propensão à enxaqueca têm a mesma probabilidade de sofrer com as crises.
“Na infância, elas são até ligeiramente mais presentes nos garotos”, informa a ginecologista e obstetra Fernanda Deutsch Plotzky, da Clínica Célula Mater.
Mas aí, quando chega a puberdade, a encrenca começa a ficar muito maior para elas. “As mulheres passam então a ficar mais suscetíveis, e os hormônios, somados às pressões do ritmo de vida, alimentação e outros fatores externos, estão por trás dessa inversão”, explica.
Fernanda Plotzky chama atenção ainda para as dores de cabeça específicas de um período do mês, no início da menstruação, marcado pela queda nos níveis de estrogênio.
Há casos inclusive em que o uso contínuo de anticoncepcional com esse hormônio é a saída contra o sofrimento.
Mas a médica alerta: para mulheres com enxaqueca com aura – precedida por alterações visuais, como pontos luminosos – as pílulas com estrogênio são contraindicadas. Isso porque a versão sintética do hormônio eleva o risco de AVC.
Já a gestação, sobretudo depois do primeiro trimestre, favorece a diminuição das crises. É que há uma estabilidade do estrogênio ao longo dos meses de gravidez. Por fim, na menopausa, como diminui a oscilação dos hormônios, há uma tendência a se reduzirem os quadros do suplício.
Quem tem dor quer se livrar dela. Daí é natural que analgésicos estejam sempre à mão dos enxaquecosos. Mas o tiro pode sair pela culatra.
“O uso excessivo muitas vezes causa a chamada dor rebote. Com o tempo, a tendência é a piora das manifestações, exigindo doses cada vez maiores, com a eficácia diminuindo até não fazer mais nenhum efeito”, diz Tiago de Paula.
A promessa de alívio vem de um avanço da medicina: os anticorpos monoclonais. Eles reproduzem em laboratório, a partir de células vivas, proteínas que bloqueiam a ação de moléculas ligadas ao aparecimento de doenças.
No caso da enxaqueca, o remédio trabalha para inativar o tal CGRP, mais abundante no cérebro dos que sofrem de migrânea. Como todo medicamento biológico, este age de modo certeiro nesses alvos, o que reduz o risco de efeitos colaterais.
Por aqui o primeiro desses fármacos, o erenumabe, foi aprovado em 2019.
Aplicado por uma injeção subcutânea uma vez por mês, ele é indicado tanto para quem sofre de enxaqueca crônica quanto para evitar eventuais crises. “Os anticorpos monoclonais são uma alternativa para os casos mais complexos, em que o paciente não responde a nenhum outro tratamento”, pontua Tiago de Paula.
O uso do erenumabe é profilático, ou seja, a ideia é nem dar chance para os sintomas aparecerem e a cabeça ficar leve.
“Já representei de olhos fechados, chorando de dor, por não aguentar a luz”. Fernanda Montenegro, atriz
Para a enxaqueca crônica – quando as dores persistem por mais de 15 dias ao longo do mês e o quadro que se repete por três meses consecutivos -, o especialista pode prescrever a substância.
Ela age diretamente no nervo trigêmeo, responsável pela sensibilidade da cabeça e da face. “No início é feita uma aplicação por mês até que a pessoa saia da condição crônica. Então, se programa o espaçamento da toxina, que normalmente passa a ser empregada a cada três meses, por oito ciclos, ao longo de mais ou menos dois anos”, descreve Tiago de Paula.
Aqui entram em cena medicamentos para controle da epilepsia, como o topiramato, mas em doses menores do que no seu uso convencional.
Eles costumam ter bons resultados, sobretudo para a enxaqueca com aura. Esse tipo de remédio atua para reequilibrar as substâncias cerebrais envolvidas no mecanismo da dor. Perda de peso e cansaço podem surgir durante o tratamento.
Eles também ajustam neurotransmissores como a serotonina, que costuma estar em níveis muito baixos durante os quadros de migrânea.
“Como a depressão e a enxaqueca por vezes estão associadas, essa classe de medicamento acaba tratando as duas condições de uma vez”, ressalta a neurologista Fabíola Dach.
Entre os efeitos colaterais da terapia estão a sonolência e o ganho de peso.
Remédios para tratar a pressão alta, eles são amplamente utilizados também para conter as cefaleias crônicas. Isso porque ajudam a reduzir a hiperexcitabilidade cerebral, diminuindo a duração e a intensidade das crises. É preciso ficar atento para reações adversas como fadiga e distúrbios de memória.
Ela é um dos sintomas mais comuns da doença. Os enxaquecosos costumam
ter a dor associada à infecção de forma mais intensa durante a enfermidade.
Quem não está no grupo da migrânea e apresenta dor de cabeça em razão do problema também pode ver o quadro se prolongar além do habitual.
Geralmente há melhora com analgésicos. Mas atenção: se essa dor se estender por mais de duas semanas, é preciso investigar, muitas vezes com exames de imagem, para descartar a possibilidade de ser uma complicação da covid.
Em vez de proporcionar alívio, exagerar nos analgésicos pode causar o que os especialistas chamam de dor rebote.