Nada de queimar sutiãs. Graças ao poder de aglutinação das mídias sociais, um novo movimento feminista vem ganhando musculatura no Brasil. Conheça Nana Queiroz, uma das principais vozes dessa nova velha luta.
Em outubro de 2015, 15 mil mulheres saíram às ruas de São Paulo em protestos contra um projeto de lei de autoria do ex-presidente da câmara Eduardo Cunha, que pretendia dificultar o acesso ao aborto para vítimas de estupro. Entoando palavras de ordem, os timbres femininos ecoaram pelas ruas da cidade como nunca antes.
No mesmo mês, uma campanha veiculada na internet e intitulada #meuprimeiroassedio motivou, em apenas quatro dias, 82 mil relatos de brasileiras sobre suas experiências de abuso sexual. A campanha atingiu repercussão mundial, com versões em outros países, trazendo os holofotes para uma situação antes velada.
Desde então, elas não se calaram mais. Criaram blogs, revistas e grupos ativistas, que usam as redes sociais para amplificar os gritos de socorro de milhares de mulheres que, de diversas maneiras, se veem oprimidas por uma cultura predominantemente machista.
É nessa nova onda feminista, que alguns chamaram de Primavera das Mulheres, que surfa Nana Queiróz.
Em 2014, indignada com o resultado de uma pesquisa do Ipea que concluiu que, para 26% dos brasileiros, mulheres que mostram o corpo merecem ser atacadas, Nana tirou a camisa em frente ao Congresso Nacional e escreveu no corpo “Eu Não Mereço Ser Estuprada”. Ao seu protesto, uniram-se milhares de outras, cujas vozes tomaram redes de televisão nacional e internacional.
No ano seguinte, Nana criou a revista Azmina, para tratar de temas frequentemente negligenciados na grande imprensa, tais como a falta de representatividade política da mulher e a violência doméstica.
Exemplo de uma geração disposta a arregaçar as mangas em prol de seus ideais, a jornalista, de apenas 30 anos, vem dedicando seu dia a dia a contribuir para a redução das desigualdades de gênero no Brasil, um dos países ocidentais em que as mulheres se encontram em maior desvantagem em relação aos homens.
Célula Mater Press: Na questão da igualdade de gêneros, onde se localiza o Brasil em relação a outros países?
Nana Queiroz: No Ocidente, o Brasil está entre os piores.
De acordo com os rankings internacionais, somos o quinto país que mais mata mulheres por violência doméstica, estamos entre os piores no ranking de países com mulheres em cargos de lideranças em empresas e também somos o país em que mais são assassinadas mulheres trans por violência transfóbica.
Temos uma cultura do estupro intensamente arraigada, inclusive nos Três Poderes e no Ministério Público.
CMP: Como você compara o movimento feminista de hoje ao dos anos 1960, quando tudo começou?
Nana Queiroz: O movimento feminista do passado respondeu a uma necessidade do momento. Nos anos 1960, as mulheres precisavam marcar posição de uma maneira radical para serem ouvidas.
Como parte daquela sociedade, elas espelhavam problemas daqueles tempos. A pauta era prioritariamente de uma mulher branca de classe média, talvez porque eram as únicas que tinham tempo disponível para a militância. As mulheres negras estavam excluídas da academia, da vida política.
O feminismo hoje consegue abraçar mais causas. Não existe a mulher como uma identidade única, mas sim a mulher branca, a mulher negra, a mulher indígena, a mulher trans, a mulher pobre. E para mim o grande propulsor dessa mudança foi o sistema de cotas. As mulheres jovens que têm pensado o feminismo e trazido essa pauta interseccional são mulheres que se serviram de políticas de inserção de negros e pobres na vida social.
CMP: Por que ainda é tão difícil vermos mulheres ocupando cargos de importância na esfera pública no Brasil?
Nana Queiroz: A principal razão pela qual as mulheres não entram na carreira política é a dupla jornada.
Como no Brasil elas assumem muito mais responsabilidade sobre a casa e os filhos, elas têm menos tempo livre para investir em vida política, leitura, especialização.
Então a primeira questão a resolver quando se pensa em incluir mulheres na política é a da divisão dos trabalhos de casa. Se a família brasileira não mudar, essa realidade não vai mudar.
CMP: Como a discussão sobre a sexualidade se insere dentro da questão da igualdade entre os gêneros? Em outras palavras, é possível alcançarmos igualdade no mercado de trabalho sem que haja igualdade sexual entre homens e mulheres?
Nana Queiroz: Não. Enquanto houver desigualdade sexual entre os gêneros, vai haver assédio sexual no trabalho, que é a raiz do problema. Mas antes é preciso esclarecer uma coisa.
Muita gente não entende que feminismo não é o oposto de machismo. Feminismo é a igualdade de gêneros.
E isso significa padrões morais iguais. Ou seja, você pode ter o padrão moral que você quiser. Se você é religiosa e tem que se guardar para o casamento, tudo bem, desde que se defenda que homens e mulheres devem se guardar para o casamento. Se você acha que sexo é uma expressão de afeto e desejo que pode acontecer dentro ou fora do casamento, que essa medida seja igual.
Todos os mitos de que o homem tem um desejo mais incontrolável pela presença de hormônios x ou y foram derrubados pela ciência. O que existe é uma repressão social intensa da sexualidade feminina.
Desde a infância, a mulher é criada para sentir culpa pelo próprio desejo e ser submissa sexualmente, e isso impede a trajetória dela rumo ao prazer, ao orgasmo e à liberdade sexual.
Se olhar a quantidade de mulheres brasileiras que nunca atingiram o orgasmo, você vê que é muito grande, e isso só se explica por causa da cultura repressiva ou de um sexo orientado para o prazer masculino.
Temos que entender que o prazer é um direito nosso. Muitas acham que o sexo acaba quando o homem atinge o ápice.
Sugiro uma leitura: Vagina, uma biografia, de Naomi Wolf, que para mim foi muito libertador.
CMP: O site Azmina publicou um artigo falando sobre liberdade sexual em que a autora relata como sempre achou que ser livre sexualmente era poder ser a gostosona que levava os homens à loucura, muitas vezes a despeito do próprio prazer. Por que ainda é tabu para tantas mulheres buscar o próprio prazer e compreender o próprio corpo?
Nana Queiroz: O tabu está na visão da mulher brasileira como objeto sexual.
Nós, mulheres, interiorizamos essa visão (de objeto sexual) e por isso achamos que liberdade sexual e prazer sexual é levar os homens à loucura. Essa ideia tem que ser destruída.
A gente ainda não tem a noção de que ser uma pessoa bem-sucedida no sexo não é enlouquecer o seu parceiro, mas se deixar enlouquecer pelo seu parceiro também.
CMP: O que é liberdade sexual para você?
Nana Queiroz: Liberdade sexual pressupõe escolha. Se achar que o que dá mais prazer é o papai-mamãe, legal. E se achar que é transar numa casa de suingue, isso é escolha sua e do seu parceiro.
Eu, por exemplo, optei por ser casada e vivo uma relação de extrema liberdade porque posso expressar para meu marido todos os meus desejos, minhas fantasias e vice-versa. Tenho a liberdade de dizer a ele que eu preciso de estímulos x ou y para que a relação sexual não termine antes de que eu esteja satisfeita, e nós dois temos uma vida sexual que respeita a vontade e o desejo dos dois. Estou numa relação monogâmica por escolha, da qual eu posso sair a qualquer momento.
CMP: O que é a “cultura do estupro” e como combatê-la?
Nana Queiroz: A cultura do estupro treina a sociedade para culpar a vítima pelo estupro e para que o estupro seja justificável. A não ser que seja radicalmente chocante, ele é aceito pela sociedade.
Como você sabe se há a cultura do estupro em um país? Quando, em vez de perguntar quem é o estuprador, a gente pergunta quem é a vítima. Quem a menina é, se ela fazia suruba ou quais são os atos sexuais dela. Nada disso importa, porque estupro é estupro.
CMP: Como as mulheres contribuem para perpetuar a cultura do estupro?
Nana Queiroz: A cultura do estupro é a faceta sexual da cultura machista. A mulher colabora na cultura machista, mas seu papel é secundário, porque é um papel de oprimida. Muitas mulheres sentem que a única maneira de conseguirem o amor e a aprovação masculinos é engolir o discurso do machismo. E assim reproduzem o machismo. Mas são sobretudo vítimas, que são inseguras e acham que valem menos.
Acho errado dizer que a culpa é da mãe que criou os filhos para serem machistas. Uma pessoa que se acha inferior porque tem o gênero feminino é muito mais vítima do que vilã, porque interiorizou tanto a submissão e a inferioridade que acaba se tornando opressora para outras mulheres.
CMP: De que forma as mães, de meninos ou de meninas, podem exercer sua influência para não alimentar esse círculo vicioso de machismo em sua própria casa?
Nana Queiroz: As mães têm papel essencial, mas são tão responsáveis quanto os pais.
A melhor maneira de combater a cultura do estupro é a educação. É criar os meninos para não serem estupradores, e não criar as meninas para que não sejam estupradas.
Quebrar padrões de gênero, nunca falar que o filho tem uma namoradinha, estimular o filho a ser um garanhão, não estimular a filha a ser um objeto sexual, não favorecer a sexualização precoce e exagerada da infância.
Ensinar para meninos desde pequenos quais são os limites do consentimento. Quando criamos meninos para achar que sexo é um bem em si, e deve ser buscado a todo custo, estamos estimulando os homens a se aproveitarem de situações nebulosas para tirar vantagem das mulheres.
Se uma moça está desacordada, ou bêbada a ponto de o seu julgamento estar alterado, isso é estupro. E, quando se vê a mulher como objeto sexual, e não como sujeito sexual, você alimenta a cultura em que ela tem que ser usada. Não importa o que ela quer, ela é uma propriedade do homem.
CMP: Você é otimista em relação ao futuro da questão da igualdade de gêneros?
Nana Queiroz: Sou muito otimista. Chamamos esse movimento que começou desde 2015 de Primavera das Mulheres, e vejo que desde então mais e mais mulheres têm assumido o título de feminista, o que para mim significa assumir o comprometimento de lutar contra a cultura do estupro na vida política e pessoal. Isso me enche de esperança para que a gente tenha um futuro melhor.
Fonte: Revista Célula Mater Press, edição nº 14, página 07, 2016.
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Reportagem: Débora Mamber Czeresnia
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