Até pouco tempo atrás, a medicina, como muitos outros campos de trabalho, era dominada por homens. Uma mulher que procurasse uma ginecologista e obstetra do mesmo gênero não tinha muitas opções. Isso fez com que muitas se habituassem a ser tratadas por homens.
Com a revolução feminina, as mulheres foram paulatinamente se apoderando de seu lugar em diversas especialidades médicas. Uma a uma, as barreiras foram sendo ultrapassadas. Só que, na urologia, essa barreira parecia bem mais alta. Era impensável para a grande maioria dos homens tratar de seus problemas no trato genital e urológico com uma mulher.
Na Universidade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, no final dos anos 1990, a então jovem Miriam Dambros surpreendeu a todos quando decidiu que a urologia seria a sua escolha.
Era a primeira mulher da escola a resolver enfrentar o Clube do Bolinha. Em outras cidades brasileiras, aqui e ali, algumas jovens pioneiras tomavam a mesma decisão. Apreensivos pelo futuro de sua aluna, os professores de Miriam a aconselharam a limitar-se à urologia feminina.
De início, foi o que ela fez. Estudou a fundo, com Doutorado em Uroneurologia na Universidade de Maastricht, na Holanda, essa área, que viria a crescer enormemente nos anos que se seguiram. Mas, com os anos de prática, foi ganhando confiança para ampliar sua zona de atuação e passou a atender também os pacientes do sexo masculino.
Hoje, Miriam continua sendo uma das poucas mulheres na urologia brasileira. Já como docente na Universidade Federal de São Paulo, estimula outras residentes a enxergar que é possível, sim, exercer a carreira. Com as mudanças na sociedade, ela percebe que os homens estão pouco a pouco se acostumando – e algumas vezes até preferindo – se tratar com uma mulher.
E como você verá na entrevista que concedeu à Célula Mater Press, apesar de seguir enfrentando preconceitos, Miriam não teme mais pelo futuro.
Uma das poucas urologistas do Brasil, Miriam Dambros enfrenta preconceitos de todos os lados no exercício da sua profissão.
Miriam Dambros: Sempre quis ser médica, mas durante um tempo flertei também com engenharia química. Cheguei até a prestar engenharia e cursar o primeiro ano junto com medicina, mas acabei desistindo no segundo ano, pois estava muito difícil levar as duas escolas. Mas a paixão por exatas e tecnologia sempre existiu. Por isso acabei trabalhando em urologia, uma especialidade que se apoia muito nesses dois pilares.
A urologia foi uma paixão que tive no começo da faculdade, logo na primeira aula de anatomia. Fui a primeira residente mulher de urologia da minha faculdade, no Sul, e talvez por medo do novo os professores me estimularam a me focar em urologia feminina, pois achavam que eu teria muita dificuldade nos demais campos dessa especialidade.
Miriam: De fato, os pacientes masculinos preferem até hoje ser atendidos por médicos homens. Confesso que, no início da residência médica em urologia, eu mesma não me sentia muito confortável atendendo homens. Hoje não mais.
É muito comum a mulher urologista acabar se especializando no atendimento a mulheres ou pediatria. Não havia muita opção: era simplesmente como as coisas eram.
Hoje, os tempos mudaram, mas a tradição de receber atendimento urológico feito por um homem vai demorar para mudar. Nem os próprios colegas encaminham pacientes para uma urologista. Hoje, representamos apenas 1% dos médicos dessa especialidade.
Miriam: Há cada vez mais mulheres nessa área e isso por si só já é um estímulo. Vencer o preconceito é um processo de educação e conhecimento. Com o tempo, os homens vão perceber a presença de mais mulheres urologistas e isso vai deixar de ser uma coisa diferente, uma novidade.
A visão mais aberta do papel da mulher na sociedade e, consequentemente, na medicina é algo relativamente novo. E, se considerarmos que a vasta maioria dos pacientes que procuram o urologista tem, em média, mais de 60 anos, é fato que lidamos com uma população de conceitos mais tradicionais. Portanto, a urologista ainda precisa trabalhar ativamente para que as próximas gerações de homens da terceira idade tenham uma percepção diferente.
Os homens que atendo acabam sendo mais jovens. E percebo que procuraram especificamente uma urologista porque acreditam que seu problema, quase sempre relacionado a questões sexuais, será mais bem recebido.
Miriam: Sim. A urologia feminina está crescendo muito e, com isso, mais mulheres procuram um especialista para tratar de problemas comuns, como incontinência urinária, infecções urinárias de repetição e dores pélvicas crônicas. São problemas que, por serem crônicos, geralmente acabam gerando também desconfortos psicológicos.
As pacientes ficam fragilizadas e é natural que se sintam mais seguras em discutir essas questões com outra mulher.
Miriam: Não, o homem não precisa ir ao urologista com tanta frequência. Há três fases da vida em que o homem deve procurar o urologista. Primeiro, quando começa a ter uma vida sexual ativa. Esse é o momento de falar sobre doenças sexualmente transmissíveis, discutir vacinas como a de HPV, falar sobre formas de contracepção disponíveis para o homem e até conhecer um pouco do que existe para as mulheres.
Idealmente, essa visita deveria ser feita antes de o jovem se tornar sexualmente ativo. Desde esse primeiro momento até por volta dos 40 anos de idade, o homem só procura o urologista se tiver algum problema de saúde, como cálculos renais.
Ao completarem quatro décadas, é comum os homens procurarem mais o urologista, e geralmente as queixas são relacionadas às disfunções sexuais. Após os 40 anos, aí sim, recomenda-se visitar o urologista anualmente para verificar alterações na próstata. Em alguns casos, nesse período, avaliamos também a deficiência androgênica – momento comparado à menopausa feminina decorrente da diminuição de hormônios sexuais.
Miriam: Diferentemente da menopausa, a andropausa acontece gradativamente. E, apesar de ter vários sintomas, o que realmente preocupa os homens é a disfunção sexual. Eles costumam procurar um urologista a partir dos 65 anos, quando percebem que os medicamentos para disfunção erétil não estão funcionando. O tratamento, em algumas situações pode ser a reposição hormonal de testosterona. No entanto, só há a recomendação quando o paciente tiver o diagnóstico de andropausa, que requer exames clínicos e laboratoriais.
Miriam: Sim. Antes deles, os diagnósticos eram invasivos e as drogas eram injetáveis – o que, por si só, já causava disfunção sexual. Nesse período, o homem via o problema como algo terminal. Depois dos anos 1990, com o advento do medicamentos orais para disfunção erétil, sai a injeção peniana e entra a injeção de ânimo. Mais de 70% dos pacientes foram resgatados. Hoje eles chegam ao consultório com mais estímulo, cheios de esperança.
Miriam: Com o envelhecimento da população, pode-se dizer que a urologia e a geriatria são as especialidades do futuro. Hoje 65% dos pacientes dos urologistas têm mais de 65 anos. Além disso, o urologista trata duas das principais queixas da geriatria: incontinência urinária e doenças da próstata. E hoje, graças aos avanços tecnológicos, temos um aparato para tratar esses problemas de forma minimamente invasiva.
Fonte: Revista Célula Mater Press, edição 06, 2013
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Editora-chefe: Débora Mamber Czeresnia
Reportagem: Gabriela Scheinberg